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Temos autoridade para definirmos o nosso movimento

Por Carina Prates

 

Eu vivi pra ver feminista chamando feminismo radical de “teoria desnecessária”.

Vem cá, minhas fia, vocês acham que pra se denominar alguma coisa não é necessário conhecer ou é só com o feminismo mesmo?

Feminismo radical não é nada mais, nada menos do que a segunda onda do feminismo.

A primeira foi com o lance das sufragistas e da igualdade (de salários, principalmente), com a inserção da mulher branca de classe média no mercado de trabalho (as negras já estavam sendo exploradas).

A segunda onda veio por volta dos anos 60, na época dos movimentos de direitos civis e talz. Foi uma época de intensa produção de teoria e movimentação feminista, de análise sobre a RAIZ do patriarcado e da supremacia masculina, da misoginia e subjugação das mulheres.

A divisão do trabalho originou-se pelo sexo, os papéis sexuais, os quais chamamos de gênero, originaram-se pela divisão sexual, o confinamento das mulheres deve-se ao seu papel na reprodução, o terror feminino pelo estupro, pelo controle sexual e reprodutivo. Então dizer que feminista radical é bucetista e transfóbica por isso é fazer uma análise profunda como um pires.  Conheçam o trabalho da Shulamith Firestone e das feministas que fizeram análises materiais.

Vcs não param pra pensar porque o feminismo radical é a corrente feminista mais atacada de todas. Conceito de igualdade é fácil de assimilar. É só dar às mulheres salários parecidos, inclusão nas universidades e ilusão de igualdade que o feminismo parece superado.

Agora, vai falar em como o próprio conceito de feminilidade é misógino e opressor. Fala como a masculinidade é construída para ser agressiva, dominadora e referencial da humanidade. Fala sobre as raízes da prostituição e em sua abolição. Fala em como a pornografia reforça a cultura do estupro. Fala em como a exigência pela beleza feminina é misoginia. Tudo isso é subversivo demais, mexe com privilégios, ataca a supremacia masculina em suas bases, incomoda os agentes do patriarcado.

Indivíduos fazendo individualidades, vcs não percebem o quanto de  liberalismo está contido nisso? Porque não tem nada de reforço ao status quo vc escolher o seu gênero como se ele fosse inato, como se existisse cérebro masculino e feminino e como se mulheres escolhessem se identificar com o que nos oprime. Amigas, prestem atenção em tudo isso.

Vcs não percebem tb o quanto isso é muito rolê ocidental de classe-média. Na África não tem ninguém perguntando para as meninas que tem o clitóris extirpado como elas se identificam para saberem quais vão ser mutiladas e quais não vão. Enquanto tem trans na prostituição e sendo mortas, vcs estão brigando com feministas radicais no facebook por não termos a mesma análise de gênero. O patriarcado é mundial, a análise feminista tb deve ser.

Não me surpreende que o livro Backlash da Susan Faludi foi escrito nos anos 90. Porque o avanço anti-feminista, os ataques à segunda onda feminista foram grandes e continuaram crescendo. E vcs estão ajudando. Quando vcs acham ok que se destruam as bases do feminismo, como a análise de gênero, vcs estão deixando que o feminismo seja atacado de dentro.

Não é estranho que ativistas que já tinham seu próprio movimento e já tinham espaço em alguns locais feministas tentem se apropriar do feminismo como um todo, esmagando suas bases e impondo os seus conceitos? Já se perguntaram por que isso só acontece no feminismo, que sejamos OBRIGADAS a sermos mães de todo mundo e de todos os movimentos, enquanto o restante pode cagar na cabeça de mulher à vontade? Eu achava que maternidade compulsória fosse um assunto conhecido por feministas. Eu achava que feministas sabiam que não temos obrigação de sermos mães. Vcs estão caindo como patinhas.

Não é questão de radical querer ser dona do rolê, é questão de LÓGICA. Mulheres são as donas desse rolê e temos autoridade pra definirmos o que é e o que não é feminista. Também temos autoridade para definirmos a nossa própria opressão, sem que ninguém, mesmo que tb seja oprimido, nos diga que somos privilegiadas por sermos reconhecidas como aquilo que nos oprime. Fomos nós as designadas mulheres, foram as nossas vivências e a análise da raiz da nossa opressão que construiu esse movimento. Não quero expulsar ninguém dos espaços liberais em que já estão, mas que tenham mais respeito com a nossa história. Como disse outra feminista, um socialista pode apontar qual práxis é ou não socialista. Se uma pessoa defende privatização e se diz socialista, outros socialistas podem apontar que isso é contraditório. Mas com feministas, com mulheres, não? Temos que deixar ser um oba oba porque não temos autoridade para definir as coisas no nosso movimento? Por favor, leiam Definindo o Feminismo da Denise Thompson, vcs vão entender muitas coisa.

O feminismo que eu conheci com 15, 16 anos, era totalmente diferente desse lance furado que vcs estão propagando hoje. Análise de gênero como hierarquia, como um papel pra dominar mulheres era consenso, pq era feminismo básico. Hoje é coisa de radical, ai credo.

Eu, que ando muito zen, tô chegando à conclusão de que tudo isso é noobice. Má fé de algumas pessoas e ingenuidade de muitas meninas, traídas pela própria socialização.

 

*Texto escrito originalmente como uma nota no facebook, mantendo a linguagem informal.