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Acesso à teoria radical – O ponto de vista de uma feminista radical da periferia

Por Carina Prates

Nasci e cresci na periferia. Nunca passei por necessidades básicas devido a isso, mas a periferia da cidade é a realidade a qual cresci e a qual eu vivo.

A periferia é subestimada em sua produção cultural e em sua própria intelectualidade porque existem pessoas de diversos tipos, como em outras camadas sociais. Existem pessoas que gostam de estudar e ler e outras que não. Quantas vezes vemos pessoas de camadas sociais mais altas, que tiveram acesso a boas escolas, sendo completamente ignorantes em diversos assuntos?

Para quem não tem muita grana, ter acesso a livros de seu gosto pode ser mais complicado, devido ao alto valor dos livros e por não necessariamente ser um item de primeira necessidade. O acesso a escolas de qualidade, então, nem se fala.

Mas, quem não passa por grandes necessidades, e está a margem por uma questão geográfica apenas, há opções. Há o acesso a livros através de sebos e bibliotecas públicas e, hoje, a internet está bastante difundida nas periferias.

Isso não é um discurso meritocrático de “quem quer, consegue”. É uma longa introdução para dizer que eu fui uma dessas pessoas, que não teve acesso a uma escola de qualidade (apesar de ter tido alguns bons professores), mas que teve acesso ao menos à leitura, muito devido ao meu pai, que sempre gostou de ler e, OK, trabalhei em livrarias também, que tem acesso à internet. A questão de ler ou não, apesar da forte influência da classe social, e a questão cultural de não se valorizar muito o estudo e a leitura estão impregnadas em toda a sociedade (digo, do país, é a realidade que conheço).

E onde entra o feminismo nisso?

A longa introdução é para dizer que eu mesma subestimei a minha experiência todas as vezes em que, mesmo não concordando muito com coisas A ou B, achava OK o feminismo ser pausterizado para facilitar o entendimento das pessoas da periferia, como eu.

Subestimei o intelecto das meninas e mulheres da minha realidade quando, mesmo não me vendo como uma, apoiava coisas “nada a ver” no feminismo liberal só por ser o feminismo mais acessível para as meninas que estavam entrando.

Eu achava academicista algumas radicais pesarem tanto em teoria porque as meninas da minha realidade não teriam acesso a tanta leitura, ou ao inglês mesmo, pelo fato de boa parte da teoria não estar em português. Mas as coisas que eu não via eram: eu comecei a ler teoria com textos que as meninas traduziam, com blogs e textos que me mandavam. Ué, acho que as meninas com as quais eu me preocupava por não ter acesso podiam ler também, já que eu lia, se estávamos no mesmo contexto. A questão é que eu me preocupei mais com elitismo do que em difundir essa teoria (OK, não vou me martirizar, me preocupei com ambos), mesmo que uma pequena parte dela. Outra questão aqui é que se a academia fosse predominantemente radical, seria uma maravilha. E por que boa parte dessas autoras que não são traduzidas nem estão na academia? Backlash, não culpa do “elitismo” das radicais.

Hoje eu estou vendo os rumos que a desinformação tem tomado no feminismo. Mulheres sendo “rachadas” no próprio movimento devido muito à misoginia, mas muito à ignorância também.

Quantas pessoas têm demonizado o feminismo radical sem ter lido nada a respeito? Ou, de forma mentirosa, citado autoras totalmente fora de contexto? E pior, muitas mulheres baixando a cabeça pra isso por terem sido coagidas a não ler as nossas antecessoras.

Sim, hoje eu vejo de outra forma. Construir feminismo na rua, nas marchas, nos coletivos, nas ações políticas do dia a dia, é extremamente importante. Apesar de estar afastada de muitas dessas atividades devido a aspectos também sociais ligados a tempo e trabalho. Então, o que resta? A vida não é feita só de teoria, às vezes até nós mesmas nos vemos fora daqueles princípios que apoiamos. Ou até mesmo, podemos pensar alguns pontos de forma divergente da teoria que mais nos identificamos. Eu me vejo como uma feminista radical, apesar de ter pequenas divergências. Mas, enfim, até onde vai essa curva, fica para outra discussão. Mas: leitura importa. E o que persiste é: a ética feminista, independente do que você faça como feminista.

Valorizem o trabalho das mulheres que pensaram na nossa experiência antes de nós mesmas. Teoria é importante sim. E só com acesso a informação não veremos pontos tão caros ao feminismo serem distorcidos e usados de forma ignorante ou desonesta, ou fazendo-nos obrigadas a dar o braço a torcer. Ou, nas melhores das intenções, deixar os princípios do movimento serem pausterizados para que fossem acessíveis para todas, tornando-se nessa massa disforme que vemos hoje. Não subestimem suas irmãs.