Negra, feminista e radical.

Por Carina Prates

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Comecei a minha militância, inicialmente virtual, quando no Orkut comecei a participar de comunidades feministas e de militância negra. Algumas dessas comunidades foram memoráveis para mim, como a Feminismo & Libertação; Se não me vejo, não compro; Negros, entre outras. Foi ali o início do meu aprendizado e aonde criei minhas bases de atuação.

De lá pra cá, muitas coisas mudaram, fui para marchas, reuniões, fiz militância de forma autônoma e coletiva e a rede social mais utilizada já não é a mesma.

Porém, uma coisa que não mudou são as discussões e os velhos bordões. Quem já me conhecia naquela época sabe o quanto já me desgastei e o quanto briguei com militantes negros devido ao machismo nos espaços de militância e também o quanto eu e outras feministas negras já colocamos nossas pautas em espaços feministas.

Apesar de todos os desentendimentos, pelo menos eu, enquanto muher negra, tive muito mais facilidade de me articular no meio feminista do que na militância negra mista, tenho muito mais facilidade de lidar com mulheres nesse meio. Apesar das diferenças de etnia e de classe, que são fatores de vivência e análise muito importantes, vejo muito mais horizontalidade entre mulheres na militância. Isso não significa que eu não vá contestar quando a pauta racial no Movimento de Mulheres for esquecida, assim como já fizeram as minhas antecessoras. Não é que uma luta seja mais importante do que a outra, é porque, no final das contas, mulheres negras se vêem brigando por todos, mas temos que lidar com nossas pautas enquanto mulheres serem menosprezadas e até mesmo ridicularizadas, temos que lidar com o nosso silenciamento em espaços mistos (de homens e mulheres) em nome das “causas maiores”. Mulheres, em qualquer que seja a militância, sempre são deixadas por último. E é por nós que vou lutar. Chega de secundarizar as mulheres.

Não sou apenas uma pessoa negra, sou uma mulher, e isso molda a minha vivência de forma tão importante quanto.

Meu feminismo é negro, minha militância negra é feminista e as mulheres são o meu foco de militância, porque somos as pessoas que ficam para sempre como pautas secundárias em qualquer espaço de luta. Muitas vezes, temos que nos calar diante do machismo dos nossos “companheiros” para não atrapalharmos os seus objetivos principais (e esses objetivos principais nunca nos envolve).

Há muito tempo venho batendo na tecla de que uma luta antirracista que não respeita mulheres, é uma luta incompleta, pois mulheres negras vivenciam o racismo, e mais, vivenciam-no na sua própria construção e vivência enquanto mulheres.

Por isso, sou uma feminista negra radical.

Tenho todo o respeito pela história do conceito feminista de interseccionalidade, pela luta não apenas de Audre Lorde para construir um feminismo que lida com a sua negritude e lesbiandade, mas também, aqui no Brasil, pela luta de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e outras guerreiras.

Essas lutas são importantes para todas as feministas, na construção de um feminismo que atenda de fato a demanda de todas as mulheres, mas principalmente para as feministas negras, de todas as correntes.

Porém, a segunda onda feminista foi a base para a nossa luta enquanto feministas, foi onde criaram-se as bases para as reivindicações das mulheres enquanto classe.

Em conjunto com os movimentos pelos direitos civis, nas décadas de 60 e 70, o feminismo negro foi se consolidando, apesar de todos os problemas internos.

A luta antirracista é estritamente importante também para negras radicais, porém, o nosso foco é, principalmente, nas mulheres negras, naquelas que estão sempre esquecidas. Assim como, dadas as devidas proporções, a luta anti-homofobia entre as radicais tocará primeiramente em como isso afeta lésbicas.

Ampliando o assunto, quando falei brevemente sobre a minha história no meio militante e sobre velhos bordões, é para dizer que tenho visto durante esse tempo, muitos argumentos repetitivos e, recentemente, me deparei novamente com um deles:

“O feminismo não é para mulheres negras, é um movimento social branco”.

Digamos que sim, o feminismo como conhecemos hoje tenha moldes europeus e norte-americanos e a base histórica contemple melhor a luta das mulheres brancas, apesar das fortes mulheres negras que fizeram história na luta antirracista e na luta feminista.

Para a velha pergunta; “o que é uma mulher?”, ainda no século XIX, Sojourner Truth, numa convenção sobre direitos das mulheres, na qual eram os homens brancos que discutiam sobre os direitos da mulher branca, perguntava se ela não era uma mulher, devido justamente a sua construção social como mulher ser diferente do que era discutido, do estereótipo vigente do que era ser mulher, devido ao racismo.

No mesmo discurso¹, Sojourner diz: “Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente.” Um trecho sobre mulheres, enquanto mulheres.

Vale a pena ler o discurso completo “E não sou eu uma mulher ?” e perceber (ou reforçar) que gênero e raça são indissociáveis para as mulheres negras. Os homens da luta antirracista não costumam discutir gênero, essas são questões predominantemente feministas, e não são menos importantes para nós, enquanto mulheres e negras.

Mulheres negras são as maiores vítimas de violência obstetrícia, violência doméstica, desigualdade salarial. São pautas abordadas por feministas, que atingem a todas as mulheres, potencializada nas mulheres negras devido ao racismo.

O feminismo radical problematiza a prostituição e a enxerga como uma violência estrutural. Que mulheres são a maioria que sofre exploração sexual, desde cedo? Sim.

O padrão de beleza europeu que atinge mulheres brancas é especialmente cruel com mulheres negras, não nos encaixamos nesses padrões, mas somos exigidas a nos adaptar.

A solidão afetiva das mulheres negras² deve-se aos fatores que pautam as escolhas afetivas, e beleza é um fator importante, somos belas, mas não da forma que a sociedade exige. A dicotomia machista santa x puta não favorece a mulher nenhuma, muito menos à mulher negra, a qual o estereótipo recai no lado que não é escolhido para casar, para ser a companheira.

Mulheres negras também sofrem misoginia. Podem não ser vistas socialmente como as muheres brancas, mas também são estupradas, espancadas, exploradas, sofrem violência psicológica, são sexualmente julgadas por motivações machistas.

Enquanto feministas radicais, problematizamos a forma como essas exigências sociais recaem sobre todas as mulheres, porém, enquanto mulheres negras, analisamos as nossas especificidades.

Até mesmo quando se fala que o que dificultou a participação da mulher negra na luta feminista foi o fato de ela limpar a casa de mulheres brancas, isso tem motivação machista, já que é sempre uma mulher limpando.

Outro fator que vale destacar, é o apelo a nossa ancestralidade e o quanto ela se diferencia do patriarcado europeu. Amo a história africana, as histórias de rainhas e guerreiras, as Candaces, os relatos sobre sociedades matrilineares, os conhecimentos científicos na Antiguidade, cujo autoria hoje sequer é mencionada. É uma história de glória não perpetuada na sociedade, é uma história na qual não se conta 1/3, nossa história foi reduzida à escravidão, às mazelas como o racismo e a fome.

Mas, uma parte crucial da nossa história, que nos afeta fortemente hoje é, de fato, termos sido escravizadas e escravizados por europeus, trazidas a um continente estranho, países estranhos, tribos misturadas.

Mulheres negras foram estupradas nas senzalas. Mulheres negras não lutaram para trabalhar fora, pois sempre trabalharam fora, açoitadas, exploradas. Ora encubadoras, ora vendo seus fihos serem mortos.

Dito isso, é necessário relembrar que assimilamos a cultura dominante, no caso, a cultura européia. Então, dizer que homens negros não podem ser machistas, é se esquivar de suas responsabilidades enquanto homem em uma sociedade machista. Outras culturas não-européias também são e foram machistas e misóginas ao longo da história, isso não é desculpa. O homem negro que comete violência doméstica, desta forma, seria como o que pretere a mulher negra por uma branca como troféu, ambas são concepções machistas, assimiladas ou não. Ambos os casos devem ser problematizados e combatidos.

Isso é ser contra o homem negro? Isso é desprezar a luta antirracista e como isso afeta nossos irmãos de cor? Não. Isso é identificar que o machismo é perpetuado por todos os homens, que a masculinidade continua sendo violenta contra todas as mulheres. Temos dores em comum com os homens negros e com as mulheres de outras etnias. Mas relações até mesmo entre homens negros e mulheres negras podem não ser horizontais devido ao machismo. O que separa homens negros e mulheres negras não é o feminismo, mito que não tem o menor sentido, é o machismo cometido pelos homens. E se as relações entre homens e mulheres fossem mais saudáveis, muitas mulheres não deixariam de militar ao lado de homens pelo fim do racismo, digo por experiência própria.

“Nossa situação como gente negra requer que tenhamos uma solidariedade pelo fato de ser da mesma raça, a qual mulheres brancas evidentemente não necessitam ter com os homens brancos, a menos que seja sua solidariedade negativa como opressores raciais. Lutamos juntas com os homens negros contra o racismo, enquanto também lutamos com homens negros sobre sexismo.”³

Assim como combatemos o machismo do homem branco e o seu poder social, por ser o que tem o poder de submeter a todos nós.

Também não vamos ignorar a nossa historia recente. A África também foi colonizada e, da mesma forma, não é um paraíso para as mulheres. Não saberia dizer se já foi, mas hoje não é.

Apenas exemplificando, mulheres no Congo são sistematicamente estupradas. Em muitos países, ainda há mutilação genital, como tradição cultural. E antes que façam duas relativizações culturais pós-modernas, vamos a elas: barbárie contra mulheres não deve ser respeitada como tradição, é barbárie mesmo; nessa prática mutila-se vaginas, independentemente de identificação.

Pergunta 1: mulheres negras não podem ser feministas?

Pergunta 2: feministas negras não podem ser radicais?

Duvido que não.

 

Notas:

1. E não sou uma mulher?

http://arquivo.geledes.org.br/atlantico-negro/afroamericanos/sojourner-truth/22661-e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth?fb_locale=pt_BR

2. Por que as mulheres negras são minoria no mercado matrimonial?

http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1314405972_ARQUIVO_PORQUEASMULHERESNEGRASSAOMINORIANOMERCADOMATRIMONIAL.pdf

3. Uma declaração Negra Feminista – A Coletiva do Rio Combahee – Abril de 1977

https://we.riseup.net/assets/178688/combahee%20river%20zine.pdf

 

6 ideias sobre “Negra, feminista e radical.

  1. mariana

    “feministas negras não podem ser radicais?”

    Claro que podem! E devem! Eu particularmente acho que TODAS as feministas deveriam ser radicais. Na minha opinião, e de todas as mulheres de verdade com quem consigo conviver com sororidade, esse é o único feminismo possível.

    Nosso movimento tem sido sabotado há décadas. Isso me causa uma revolta muito grande. É uma onda atrás da outra e eu enxergo essas ondas como irremediavelmente contaminadas por backlash patriarcal, por pequenas picuinhas que só promovem nossa desunião. Agora acham que temos que chamar de irmãs pessoas que não estão verdadeiramente nem um pouco preocupadas com a opressão das MULHERES. Nós não vamos compactuar com fetichistas iludidos que acham que podem colonizar nossa luta. Eles precisam é de um pouco de honestidade e terapia, e não de silenciar MULHERES.

    Mas nós temos é que concentrar ainda mais nossa luta, nossos objetivos. Nosso foco são mulheres e pra mim não faz diferença se são mulheres brancas, amarelas, azuis… entende? Acho que confundir e dispersar só nos atrasa. Meu feminismo radical é aquele voltado para MULHERES, não importa de onde venham, contanto que se unam. Acho que cada luta tem seu espaço mais do que conquistado e ficar misturando as coisas só diminui o que realmente queremos com mais urgência. Eu vejo trocentos filmes sobre racismo mas conto nos dedos das mãos os filmes sobre feminismo. Sei lá, temos conversado muito sobre isso e acho que cada pauta tem seu lugar e tempo e o feminismo está na verdade é atrasado em suas conquistas por causa disso. Eu e muitas amigas, que, vc sabe, ultimamente temos que nos esconder para não sermos silenciadas, temos conversado muito sobre isso, sobre o que é uma mulher e o que ela sofre, e a cor da pele é só acessória nisso tudo. Acho que temos que separar as coisas. Mulheres brancas e sei lá mais que cores sofrem do mesmo mal: PATRIARCADO e acho que ficar querendo criar uma “hierarquia de emergências e prioridades e quem sofre mais” dentro do movimento é uma coisa que foi adicionada depois dentro do feminismo, e acho que podemos também deixar pra depois. Se um dia acabarmos ou diminuirmos com o patriarcado o racismo também vai deixar de ser um problema, entende? Pois está subordinado a ele e precisamos unir nossos esforços a acabar com a RAIZ do mal, ir no radical pra valer. Vamos juntas?

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    1. negra sou

      sou feminista negra e radical e não aceito de maneira alguma que alguém venha me dizer que a cor da minha pele é “um acessório nisso tudo”. Dizer que a pauta feminista está acima do combate ao racismo é ser racista. Eu sou NEGRA e sou MULHER ao mesmo tempo, não há uma coisa que se sobreponha a outra. Não é possível deixar pra depois as diferenças que existem entre as mulheres dentro do movimento feminista: essa é uma maneira de invisibilizar a opressão racista que nós negras sofremos. É uma maneira de fingir que todas sofremos igualmente quando isso não é verdade. É completamente desonesto querer igualar as opressões que uma mulher branca e rica sofre com as opressões que uma mulher negra preta pobre e periférica sofre – enquanto a primeira vai à faculdade de medicina, a segunda trabalha limpando o banheiro da primeira.
      Acabar com o patriarcado não necessariamente acaba com o racismo. O racismo não é fruto do patriarcado. O que dizer da mãe negra pobre e periférica que perde seu filho negro pobre e periférico por causa das políticas de genocídio da juventude negra? isso é fruto de uma opressão patriarcal? não. É fruto de uma opressão racista. Repito: O racismo não é fruto do patriarcado. O racismo, enquanto sistema de dominação e exploração baseado na supremacia branca, é obra direta do capitalismo, e serve para gerar lucro ao mercado. De forma similar, o próprio patriarcado também é fruto do capitalismo, uma vez que o poder do macho, historicamente, surge com a criação da propriedade privada e se mantem por causa dela. É do capitalismo que emanam as diferentes opressões que nos atingem.

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  2. maria de lourdes

    brilhante,mas já tenho me convencido do seguinte,após visistar por um tempo blogs feministas: se o homem não for punido pelo machismo que pratica,nunca chegaremos a lugar nenhum.Isso vale para todos os homens da Terra.Se agente continuar colocando panos quentes em tanta crueldade machista,nenhum homem vai parar de nos tratar como sub-humanas.Nenhum machista se arrepende de suas crueldes,não sei porque á tabu exigir justiça para nós.

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  3. yara

    ❤ Amei seu texto. Sou branca, mas acho que o seu texto vale para todas as frentes intreseccionais do feminismo. fazem de um jeito que põe sempre o feminismo atras da primeira causa, seja ela a causa que for ( classe, cor, homossexuais, capitalismo, socialismeo…)

    Parabéns pelo texto mesmo. E pela primeira vez na vida, estou pensando em me assimir radical.
    Beijao

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  4. Maria de lourdes

    Certo,mas achei alguns pontos bem fracos no texto sobre o mercado matrimonial.como esse:

    “Essa é uma questão muito delicada e não pode ser essencializada, pois a mulher
    tem todo o direito de intervir no seu corpo, ela pode usufruir de toda tecnologia para se
    sentir bem e melhorar sua autoestima; entretanto, o que não pode acontecer é a perda da
    essência e as referências raciais, tendo em vista que isso é entrar no jogo da
    padronização. ”

    O movimento feminista vive reclamando da objetificação sexual que sofremos,vive reclamando dos padrões de beleza,para mais adiante vir argumentando que é “escolha feminina” aderir á estas práticas.Se tudo é “escolha” e “direito de intervir no próprio corpo” então,por que reclamamos quando os homens exercem esse direito contra nós? Eles tem então o direito de ecsolher nos tratar como objetos,de casar com loiras,etc.Não é tudo democracia? Como lutar contra o machismo se a mulher tem o direito de reforça-lo?

    Se nós quisermos destruir o patriarcado não podemos ficar nessa de relativizar as atitudes femininas.Essa estória do “meu corpo,minhas regras” serve mais ao machismo do que a nós.

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